JORNAL PENA LIVRE

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quinta-feira, 11 de março de 2010




RECALL, RECALL E RECALL

A velha e boa carroça, quem não se lembra?
Rodas metálicas ou não, um bom banco ao sabor do sol, ótimo cavalo para puxar.
Talvez seja o caso de salvaguardarmos nossa integridade física adotando o saudoso transporte que sempre foi bem confiável, exceto quando cavalo insistia em querer comer uma graminha num lugar inesperado e empacava.
O que está acontecendo com a industria automobilística mundial? Crise de confiança? Engenharia fraca? Fome de lucros e qualquer custo? Desrespeito ao consumidor e total desprezo pelas vidas humanas?
Observem o diálogo abaixo que bem pode estar ocorrendo dentro de uma montadora que aqui vamos chamar de Zyliat. Os outros atores deste cenário hipotético serão:
· Sr. Rocha – Presidente da Zyliat (montadora de veículos) – sócio fundador;
· Sr. Macedo – Engenheiro chefe da linha de produção;
· Sr. Maurício - Industrias Tabajara – fornecedor da maior parte das peças para a Zyliat;
· Senhorita Catarina – proprietária de uma concessionária da Montadora em tela.
Lançamento hipotético da linha Mamut – utilitário de 6 lugares, 4x4, motor diesel, orgulho da nova linha de veículos da Zyliat.
Numa reunião informal na lanchonete da empresa coloquei um microfone escondido e flagrei o seguinte diálogo entre as quatro entidades acima.

· Sr. Rocha (Presidente) – Senhoras e senhores precisamos acelerar o processo do lançamento do nosso carro de luxo, o Mamut. Macedo, por favor implemente um terceiro turno de sua equipe para dar conta do recado. Maurício, quero total esforço de sua empresa para me fornecer no tempo certo e contratado a linha de peças que necessitamos neste momento. Sta Catarina, vamos nos reunir mais à frente para discutirmos com o pessoal do marketing os detalhes de nossa campanha para o lançamento. Quero total empenho agora na reta final, sem esmorecimento e sem percalços, se possível.

· Sr. Macedo (engenharia) – Rocha, estou enfrentando dificuldades técnicas quanto ao fornecimento de algumas peças da empresa Tabajara. Peças essenciais para a segurança do veículo, mais especificamente um dos rolamentos da roda traseira. Nos testes iniciais nossa equipe percebeu um processo de fadiga de material muito precoce, talvez pela falta de qualidade do material com que a Tabajara trabalha no momento.

· Sr. Mauricio – Industrias Tabajara - Senhores, realmente aqui entre nós nossa fábrica em São Paulo está enfrentando problemas de fornecimento de matéria prima para a confecção deste rolamento. Os que estão sendo fabricados, e aí o Macedo tem razão, não observam um padrão de qualidade, mas não temos tempo de preparar outra remessa dentro dos padrões por conta do prazo muito curto do lançamento do carro de acordo com o cronograma fornecido pelo Rocha da Zyliat. Temo que isso possa trazer algum desconforto futuro.

· Sr. Macedo (engenharia) – Como assim desconforto futuro? O Sr. Poderia explicar do que estamos falando? Acidentes com as pessoas que comprarem o modelo de luxo por conta do rompimento do rolamento?

· Sr. Mauricio – Industrias Tabajara – Isso mesmo. Entretanto o Rocha já afirmou que a linha sai mesmo com a peça defeituosa, afinal meia dúzia de acidentes não querem dizer nada no universo de carros que ele pretende montar e faturar um bom lucro.

· Sr. Rocha (Presidente) – De fato senhores. Minha empresa não se preocupa com o acidente e algumas mortes que porventura venham a acontecer. Negaremos o defeito congênito das peças e ponto final. A justiça no Brasil não liga a mínima se o cara morrer ou não dentro de um carro com defeito. Os juízes, advogados, opinião pública e o escambau podem ser manipulados e ou comprados não?
O importante é lançar o carro depois a gente vê como fica esse assunto.

· Senhorita Catarina – Gente espera aí um pouco. Quer dizer que o Mamut vai sair com um sério defeito de fabricação? Não entendo. A Zyliat vai arriscar colocar o seu marketing de qualidade comprovada há anos à prova e vai apostar que isso vai ser um bom negócio? E se pessoas morrerem? Como fazer? Isso vai gerar um recall e vai custar uma fortuna trocar o rolamento com problema não?

· Sr. Rocha (Presidente) – Não se preocupem. Recall aqui no Brasil tem um monte. Só no ano de 2009 foram 40 com mais de 1,5 milhão de unidades que tiveram que ser reparadas. Nos EUA pior ainda. Juntas a Ford e a Toyota, aquela mesma que dizia ser a bambambam no quesito qualidade, tiverem que chamar mais de 6 milhões de veículos para conserto. Somando tudo isso dá uma ninharia perto do que se ganha vendendo carro. Não estou nem ai. Quem quiser que processa a Zyliat.

· Senhorita Catarina – A Folha de São Paulo, senhores, publicou hoje que uma grande concorrente italiana teve que chamar muitos carros no recall. O governo aplicou uma tremenda multa e obrigou a empresa a reparar todas as unidades do carro com defeito, se não me falha a memória um problema nas rodas que se soltaram por nada mais nada menos que em 30 ocorrências com 8 mortes comprovadas. Isso não é um tiro no pé em termos das pessoas não confiarem mais na marca?

· Sr. Mauricio – Industrias Tabajara – Bah! Que nada. O povo logo esquece como sempre. Pode colocar porcaria no mercado e 24 horas por dia dizer que este ou aquele modelo é perigoso, que tem defeito sério de fabricação e não presta que é capaz de aumentar as vendas. Se ainda tem pessoas caindo no conto do bilhete premiado não é uma coisa dessas que arranha prestigio de montadora ou de fornecedor.


· Sr. Macedo (engenharia) – Bom por mim tudo bem. Vamos fabricar o modelo Mamut em larga escala e colocar essa porcaria de rolamento mesmo que não vai fazer diferença. Tem sempre um tonto para comprar não é? He, he, he!

· Sr. Rocha (Presidente) – Claro Rsrsrsrs. Vamos vender como água no deserto o nosso novo carro e depois quero mesmo que os consumidores se lixem depois que morrerem não vão pedir indenização mesmo. Hahahahaha!. E se as famílias entrarem com processo conta a Zyliat e com a velocidade da justiça só os netos verão a cor do dinheiro.

· Sr. Mauricio – Industrias Tabajara – Rocha voce é mesmo danado cara. No segundo lote estarei fabricando o rolamento como manda o figurino, mas até lá esqueça de qualidade, vou fornecer essas porcarias que já estão prontas e vamos deixar os dados rolarem na mesa de apostas.

Meus amigos leitores. Vocês acreditam que esse diálogo pode ser verdadeiro? Pode ser até uma coisa banal dentro das montadoras? Sim é verdade. Assim mesmo que acontece.
Dinheiro e lucro acima de tudo. Mortes são efeitos colaterais que podem ser contornados.
O fato é que a industria mundial fica buscando qualidade, mas em vista de tanto recall não seria o contrário. As montadoras pregam na missa uma ladainha bem diferente daquela entoada nas ruas e estradas. Do outro lado, o otário do consumidor está morrendo com porcarias que soltam rodas, engripam aceleradores no frio, torram fios sem mais nem menos, amputam dedos (como em caso recente de uma montadora alemã desde a década de 50 aqui no Brasil) e que servem mesmo como caixões a mais de duzentos/km por hora.
Tudo em nome da qualidade que na verdade não tem. Beleza, sofisticação, preço caro, impostos absurdos, tecnologia embarcada para se perder num detalhe de uma peça que nasceu defeituosa ou de um projeto que jamais deveria ter saído da prancheta matando pessoas que compram este ou aquele modelo.
Não tem santo no mercado. Até a ilustre inventora e precursora do controle de qualidade, a Toyota, escorregou na casca da banana e deu com a cara no chão duro. Era uma vez: um, dois, três. Vai perder a liderança no mercado e ponto final. Alguém duvida? Eu não compraria um carro deles no momento. Pisaram na bola da credibilidade.
Os idiotas cós CEOS dessas grandes corporações, por ora irresponsáveis e assassinas porque deixam seus carros matando mesmo sabendo dos defeitos, não tem noção do senso de ridículo e de humanidade?
Quando vale a credibilidade, muito mais que chamar carros para consertar. O valor de um carro está perdido no meio do intangível.
Eu compro qualidade, segurança, status, beleza, aparência, potência e exclusividade. Nada disso venda a quilo na esquina.
O dia que essas empresas souberem quanto custa esses valores talvez seja tarde demais para reaverem o mercado que estão perdendo.
O pior é que os valores intangíveis estão sendo negociados com riscos ao sonho de cada um por conta de uma peça que, às vezes, custa dez “merréis” o balde cheio na fábrica do Zé.
A administração empresarial das grandes corporações automobilísticas não nasceu à luz de seus criadores e visionários para ver gente morrendo nas estradas. Os pioneiros, como Ford e companhia, queriam um veículo que pudesse levar gente aqui, ali e acolá com alegria, confiabilidade e com preço justo.
Seus sucessores estão metendo os pés pelas mãos e agora matam pessoas.
Recall, recall, recall. Estamos fartos disso.
Que tal as “monstradoras” fabricarem coisa que preste e que não mate?
Caso isso não mude tão logo seja possível prefiro o bem e velho cavalo empacado na grama comendo sem dar coices, claro!

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